sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Liga Brasileira de Lésbicas: sujeito político construindo história

Marylucia Mesquita

(...) A conquista dos direitos exige um sujeito que anuncie seu projeto e tenha ação na esfera política, participando, assim, do conflito, que deve ser inerente à democracia e instituindo, como parte desse conflito, a luta contra as desigualdades a que estão sujeitas (ÁVILA, 2000: 7-8).

A constituição, consolidação e o fortalecimento do movimento de mulheres lésbicas como sujeito político, portanto, a defesa da visibilidade lésbica como ação política constitui um questionamento ao patriarcado. A afirmação da lesbianidade constitui uma identidade política.

Partilho do entendimento de Ochy Curiel que, ao se reconhecer como feminista compreende o feminismo como pensamento teórico-crítico e prática política, como forma de construir o mundo, desconstruindo o patriarcado que se fundamenta no sexismo, na exploração econômica, na heterossexualidade obrigatória, no racismo, na lesbofobia/homofobia/transfobia e na xenofobia como sistemas articulados que afetam fundamentalmente as mulheres. É com esse entendimento que, para a LBL, a defesa da livre expressão da lesbianidade é afirmada como identidade política e se refere a uma posição estratégica que questiona uma das instituições na qual se sustenta o patriarcado: a heterossexualidade como norma, de onde se concebe a reprodução e a maternidade como destino e não como escolha das mulheres e que restringe o desejo das mulheres aos homens. Pensar ainda sobre a construção das identidades significa reconhecer que tal construção se dá pela vivência da opressão, da partilha de necessidades em comum. Trata-se de uma experiência subjetiva e intersubjetiva, portanto, a construção da identidade é necessariamente individual e coletiva.

A LBL foi criada em janeiro de 2003, durante uma o III Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em meio à realização do Planeta Arco-Íris, em uma Oficina de Visibilidade Lésbica (que contou com a participação de dezenas de mulheres lésbicas e bissexuais de vários estados do Brasil e com a presença de ativistas e não ativistas de outros países). A LBL, enquanto instância de empoderamento e mobilização nacional e internacional das lésbicas foi criada por mulheres lésbicas, ou seja, por mulheres que se relacionam afetivo-sexualmente com mulheres e que ousaram e ousam politizar a sexualidade, combatendo a heteronormatividade. Ou seja, mulheres que trazem a público a lesbianidade como uma das formas de orientação e expressão sexual e como identidade política.

A LBL é uma expressão do movimento social, que se constitui como espaço autônomo e não institucional de articulação política, anti-racista, não lesbofóbica e não homofóbica, de articulação temática de lésbicas e bissexuais, pela garantia efetiva e cotidiana da livre orientação e expressão afetivo-sexual. É um movimento que se soma a todos os movimentos sociais que lutam pela construção de uma sociabilidade anti-capitalista. A Liga Brasileira de Lésbicas não pretende se constituir em única alternativa de articulação e ação de grupos, entidades, pessoas e movimentos que dela participam. (Carta de Princípios da LBL)

Nesse sentido, a LBL enquanto instância autônoma de articulação política e temática das mulheres lésbicas e bissexuais pretende contribuir com o fortalecimento do movimento pela luta dos direitos das mulheres lésbicas e bissexuais, em nível local, regional, nacional e internacional, bem como lutar contra a lesbofobia/homofobia/transfobia/racismo/sexismo – expressões do patriarcado. Entre os princípios construídos coletivamente, vale destacar: (1) a autonomia, a autodeterminação e a liberdade como princípios fundamentais para o exercício da sexualidade sem coerção; (2) a democracia como exercício permanente e cotidiano; (3) a horizontalidade no sentido de evitar hierarquias de poder; (4) a defesa da laicidade do Estado; (5) a solidariedade com o conjunto dos movimentos sociais; (6) a defesa do feminismo e de suas bandeiras; (7) a luta contra o patriarcado e todas as formas de fundamentalismos; (8) uma posição anti-capitalista.

Atualmente, a LBL possui uma comissão articuladora nacional, comissões articuladoras regionais e articuladoras estaduais. Está representada em quatro regiões do Brasil: nordeste, sul, sudeste e centro-oeste e congrega além de organizações/grupos, entre as formadas só por mulheres e as mistas, com núcleos de lésbicas, um número significativo de ativistas autônomas (não vinculadas a grupos lésbicos).

Alguns desafios para o Movimento de Lésbicas Brasileiro
Para o enfrentamento da heterossexualidade compulsória um primeiro desafio é contribuir para o empoderamento do maior número de lésbicas no sentido do fortalecimento de sua auto-estima como mulher lésbica e cidadã. Isso significa a luta permanente perante a sociedade e o Estado pelo reconhecimento do direito à cidade, à coisa pública. A invisibilidade é uma violência simbólica praticada cotidianamente contra as mulheres lésbicas. Trata-se da negação do direito de existir.

As lésbicas organizadas também querem romper com a cultura de sua denominação de movimento como “minorias sexuais”, que representa um recurso ideológico que, ao contrário de visibilizar o movimento pela livre orientação e expressão sexual termina por fragilizá-lo politicamente. Dessa forma, faz-se necessário, cada vez mais, a ampliação do debate e das ações públicas em torno da politização da sexualidade, no sentido de romper com a heteronormatividade e com a lógica patriarcal que ainda impregna a cultura, apesar de todos os avanços e conquistas do movimento de mulheres e feminista.

Outro desafio que se apresenta ao movimento é a eterna vigilância para não cair nas armadilhas conservadoras e fundamentalistas da explicação binária da sexualidade. Isso significa garantir a identidade política do sujeito movimento de mulheres lésbicas, mas sem aprisionar o desejo, não fixá-lo em uma única direção. Mais uma questão fundamental para o movimento em sua afirmação como sujeito político é a problematização constante da práxis política. Têm sido recorrente, entre os debates das lésbicas organizadas junto à LBL, por exemplo, questões sobre como lidar com o poder, problemantizando, ainda, em qual medida ele pode fortalecer ou fragilizar o movimento.

E, como uma das maiores representações do enfrentamento deste debate no âmbito do movimento de mulheres lésbicas vale registrar que o VI SENALE, como os demais SENALE´s, constituiu um momento efetivo de empoderamento das mulheres lésbicas, incorporando à agenda política do movimento social de lésbicas alguns desafios como: (1) o empoderamento, tema central do encontro, tratou da questão do lugar de sujeito político do movimento social de mulheres lésbicas no Brasil, refletindo o poder e a democracia. Trouxe pela primeira vez o diálogo crítico baseado no respeito às diferenças, entre as duas principais articulações nacionais de lésbicas: Liga Brasileira de Lésbicas e Articulação Brasileira de Lésbicas. E ainda, o diálogo entre estas articulações nacionais com a militância do movimento conhecido autônomo; (2) a incorporação, a partir da demanda do movimento de lésbicas negras, de que o tema “Racismo, Discriminação Racial e Lesbianidade” deixasse de ocupar apenas o lugar de oficinas/grupos de trabalho para ser uma das mesas centrais do SENALE; (3) a pauta da relação movimento social de mulheres lésbicas com outros sujeitos políticos, como transexuais, prostitutas, pessoas com deficiência e gays também constituiu mesa central pela primeira vez. Particularmente, o debate entre lesbianidade e transexualidade apontou a necessidade do movimento, ou melhor, das várias tendências presentes no movimento social de lésbicas brasileiro, continuarem um debate que no, VI SENALE, apenas começou. (4) a preocupação pioneira em sistematizar a memória e a história dos SENALE´s de forma mais pública ao trazer à tona, em forma de publicação, o que foi conquistado em cada Seminário Nacional de Lésbica; (5) Uma das estratégias que se destacou durante o seminário foi o controle social. O VI SENALE pautou o tema do controle social numa mesa central, e garantiu pela primeira vez, que o tema fosse refletido na plenária final, onde foram definidas as atribuições, os critérios e os perfis de ativistas que deverão compor os diferentes Conselhos, representando as lésbicas, bem como foram definidos os nomes das ativistas lésbicas que foram democraticamente votados e legitimados para representação nos espaços de controle social.

O resultado do SENALE é fruto da maturidade e organização do movimento social de lésbicas do Brasil, e sem dúvida de muita coragem e ousadia em visibilizar essa história.

O movimento LGBTT como outros movimentos sociais se organizam em função da vivência de opressões em comum. No caso do movimento LGBTT a opressão vivenciada é homofobia/lesbofobia/transfobia que naturaliza e banaliza a heterossexualidade como norma. Compreendo que há uma agenda comum entre os movimentos LGBTT e o feminista: a luta pela garantia dos direitos sexuais como direitos humanos, o que significa a luta contra a heterossexualidade como norma, pela livre orientação e expressão sexual. Notamos que a luta pela garantia de políticas públicas, por legislações anti-discriminatórias, não reguladoras dos prazeres e corpos, quer por questões relativas à livre orientação e expressão sexual, quer pelo direito das mulheres de decidirem sobre a interrupção da gravidez também aproxima tais movimentos.

Contudo, o reconhecimento coletivo deste direito aponta para a constituição de diferentes identidades políticas: lésbicas, feministas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. Uma questão importante no que se refere à constituição das identidades é a referência de uma identidade não-fixa, de caráter não essencialista. O que significa reconhecer a livre orientação sexual não como fim em si mesmo, como algo pronto, acabado e sem mutações. A afirmação do sujeito político lésbica, gay, bissexuais, travesti e transgênero não significa a regulação ou a prática policialesca quanto a sua prática sexual. Significa o reconhecimento que todo e qualquer movimento necessita de sujeitos políticos. É assim com o movimento feminista, com o movimento negro, dentre outros.

A construção dessas identidades, por vezes, atravessa cisões e nos coloca dilemas e tensões nestes diálogos. Por exemplo, a luta contra a mercantilização do corpo das mulheres, ou seja, da exposição das mulheres como objetos sexuais constitui um tema polêmico na agenda do movimento feminista, assim como o movimento de lésbicas precisa enfrentar de forma mais radical a violência sexista e de gênero entre lésbicas. O movimento gay necessita enfrentar o machismo e a misoginia ainda presente em boa parte de suas lideranças.

Acredito que seja possível e fundamental articular as diferentes frentes de batalha em função de uma finalidade maior, em torno de um projeto radical de sociedade com capacidade de abrigar as lutas gerais, sem excluir nenhuma particularidade. Isso exige solidariedade. Pensar diálogos entre movimentos de emancipação significa também compreender que nenhum movimento deva considerar sua pauta mais importante ou mais significativa (árdua), secundarizando a de outro.

Para construção de uma Agenda Política Nacional, tais movimentos precisam identificar de que forma estão lidando com o exercício do poder. Se numa perspectiva que contribua, efetivamente, para libertação de mulheres e homens e não para reproduzir as antigas opressões que criticamos na família, no Estado, nas religiões, na escola, na sociedade em geral. É preciso reconhecer que as diferenças não podem se traduzir em muralhas para o diálogo. Quando os sujeitos coletivos não se colocam de forma mais qualificada e solidária, fragmentam-se as lutas, enfraquecem o poder de pressão.

No âmbito da construção de um projeto de transformação social, se faz necessário, ainda, que o movimento LGBTT e o movimento feminista revejam suas bases de radicalidade. A luta por demandas imediatas como a garantia de direitos civis, políticos, econômicos, culturais, sociais ainda é insuficiente e não pode ser o único fim de tais movimentos, uma vez que estamos frente à sociabilidade sob o capital.

Responder às demandas de garantia sexual e reprodutiva como direitos humanos para lésbicas, gays, mulheres, travestis, transgêneros, negras(os) - sujeitos invisibilizados permanentemente é fundamental, mas não basta!! Faz-se necessário que tais movimentos possam reoxigenar seu horizonte societário. Isso tem a ver com o fim do patriarcado, da homofobia, da lesbofobia, do racismo, do sexismo, de todas as formas de fundamentalismos, mas tem a ver também com o posicionamento crítico frente às desigualdades sociais, à naturalização da sociabilidade do capital como único horizonte possível. Sob a sociabilidade do capital algumas das conquistas do movimento lésbico, bem como dos movimentos gay e feminista, em sua trajetória de se contrapor à heterossexualidade compulsória, se tornam insuficientes, pois que estão aprisionadas à lógica mercantil, em que o ter se sobrepõe ao ser. A construção de um outro mundo é possível, urgente e necessária, mas, também exige que o movimento lésbico, juntamente com outros movimentos sociais, possa contribuir cotidianamente para a construção de uma sociedade sem exploração e opressão. Uma sociedade de mulheres e homens verdadeiramente livres e emancipados (as).

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Notas

1 As reflexões aqui apresentadas encontram-se no artigo apresentado no XIII Encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos sobre a Mulher e Relações de Gênero – Redor (Recife/2006) e publicado com o tema “Movimento de Mulheres Lésbicas: Identidade política como negação da heterossexualidade compulsória” de minha autoria. Junho/2008

2 Marylucia Mesquita é Assistente Social. Militante da Liga Brasileira de Lésbicas e co-fundadora do DIVAS – Instituto em Defesa da Diversidade Afetivo-Sexual. E-mail: marymesquita@gmail.com

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